sexta-feira, 28 de junho de 2013

Um interrogatório inusitado.

Hoje é sexta-feira, então um caso para descontração.

Quando trabalhei na Comarca de Campos Novos-SC, no tempo em que o interrogatório era o primeiro ato processual após o recebimento da denúncia (se o seu CPP ainda prevê desta forma favor comprar um novo), efetuei denúncia contra Tício pelos seguintes fatos:

a)  Tício dirigiu-se ao comércio local e adquiriu um belo aparelho de telefone celular para a namorada, pagando com um cheque de terceiro preenchido e assinado no valor de R$ 300,00 (trezentos reais).

b) Tício sabia que o cheque não seria descontado e que não devia valer grande coisa, já que pagou pelo mesmo o valor de R$ 10,00 (dez reais), em suma, tinha plena ciência de que se tratava de produto de crime anterior e o utilizou apenas como meio fraudulento para adquirir o celular.

c) Quando do interrogatório Tício sentou-se, de terno e gravata (era um terno xadrez mas era um terno) perante o magistrado e começou a narrar os fatos da seguinte forma: “Vossa Majestade, eu sabia que o cheque era roubado ...” e continuou confessando o fato, alegou que a menina era bonita e que merecia o celular, etc. E após muitos Vossas Majestades  quem sabe buscando uma diminuição da pena, Tício verificou que não conseguiu mudar o sério semblante do magistrado (que apenas estava sério para evitar a quase inevitável risada) e estão Tício saiu-se com esta: “... prometo à Vossa Majestância que não farei mais isto”.  Daí, nem o magistrado agüentou, pediu licença e foi rir no gabinete.

Quanto à Tício, no final do processo, foi devidamente condenado pelo estelionato cometido.

Para não ficar só no fato curioso e com a nova proposição para tratamento dos senhores magistrados, lanço a seguinte indagação: As partes ativa e passiva da ação penal participam do interrogatório?

Antes de 2003, a resposta seria negativa, sendo que o interrogatório era ato exclusivo do juiz. Contudo, em consonância com a Constituição Federal, no ano de 2003, a Lei 10792 trouxe algumas alterações ao CPP, dentre estas:

a) a obrigatoriedade da presença do defensor, constituído ou nomeado (Art. 185);

b) as partes poderão fazer perguntas sobre fatos não esclarecidos (Art. 188);

c) o acusado, em qualquer modalidade de interrogatório (o que inclui a videoconferência), terá garantida entrevista prévia e reservada com seu defensor (§ 5°, do Art. 185).

No caso da falta destes elementos, vale-nos a lição do STJ:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. AUSÊNCIA DE DEFENSOR NO INTERROGATÓRIO. NULIDADE ABSOLUTA. ATO PRATICADO NA VIGÊNCIA DA LEI 10.792/03. PRECEDENTE. PARECER DO MPF PELO PROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO PROVIDO PARA ANULAR O INTERROGATÓRIO DO RÉU, REALIZADO SEM A PRESENÇA DO DEFENSOR, E TODOS OS ATOS DECISÓRIOS QUE LHE SÃO POSTERIORES, MANTIDA, TODAVIA, A SITUAÇÃO PROCESSUAL DO RECORRENTE.

1. Nos termos de consolidado entendimento nesta Corte Superior, após o advento da Lei 10.792/2003, ainda que o próprio réu tenha dispensado a entrevista prévia, a presença do defensor no interrogatório tornou-se formalidade essencial, corolária do princípio da ampla defesa e do devido processo legal.

2. Recurso provido, em consonância com o parecer ministerial, para anular o interrogatório do réu, realizado sem a presença de seu defensor, e todos os atos decisórios que lhe são posteriores, mantida, todavia, a  situação processual do recorrente. (RHC 26.141).

 
Abraço a todos e o desejo de um feliz e abençoado final de semana,

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Pessoa jurídica vítima de difamação e injúria. É possível?

Nesta tarde recebi vista de ação penal privada promovida por pessoa jurídica contra três querelados. A inicial imputa os crimes de difamação e injúria.

Nos questionamos então: a pessoa jurídica pode ser vítima de difamação e injúria?

Segue parte do parecer exarado na ação penal e que responde a nosso questionamento:

“Inicialmente, vale ressaltar que nos crimes contra a honra, a pessoa jurídica pode ser sujeito passivo somente de difamação, não, porém, de injúria.

Ora, a pessoa jurídica não possui honra subjetiva, que se traduz no sentimento da própria honorabilidade, elemento caracterizador do crime de injúria. Possuí, contudo, boa ou má reputação, motivo pelo qual pode ser ofendida e difamada.

Vejamos a seguinte decisão proferida pela 2ª Turma do STF, em que foi relator o Ministro Francisco Rezek:
 
A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo do crime de difamação; não porém, de injúria ou calúnia.' "E assim o é apenas porque, à pessoa jurídica, não se pode negar reputação e boa fama, que não constituem atributos da honra subjetiva - como na injúria - ; mas sim da honra objetiva. Assim, ninguém poderá pleitear que a pessoa jurídica seja sujeito passivo de injúria ou calúnia. E é assim porque o sentimento de dignidade ou decoro só é concebível numa pessoa física. Mas, na sua reputação, repetimos, a pessoa jurídica pode ser atingida; tanto que essa lesão reflete em seu patrimônio. "Este posicionamento jurisprudencial, além da chancela do eminente e erudito Ministro Rezek, conta com os dos eminentes Ministros: Djaci Falcão, Moreira Alves e Aldair Passarinho" (RTJ-113/90, vol. 113, julho de 1985).

No mesmo sentido RHC 83091, Pet 2491 AgR, Inq. 800, todos do STF.”

Da mesma forma, os doutrinadores modernos (Capez e Damásio por exemplo) admitem o crime de difamação contra pessoa jurídica.

Nosso parecer concluiu pelo seguimento da ação penal, tão somente, quanto ao crime de difamação.

Guardemos então, para fins de concurso e prática,  a informação de que a pessoa jurídica não é vítima do crime de injúria, o sendo, contudo, do crime de difamação.

NA CONTRA MÃO: Para os doutrinadores Hungria e Fragoso a pessoa jurídica sequer pode ser vítima de difamação. Também há decisões do STF, anteriores a 1984, no sentido de que apenas pessoas físicas poderiam sofrer crimes contra a honra. Tais precedentes e doutrinadores nos servem como conhecimento histórico, contudo não aconselho a adoção de tal entendimento em qualquer concurso.

Abraço a todos,

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Da possibilidade de investigação pelo MP

No dia de ontem, 25 de junho de 2013, a Câmara dos Deputados rejeitou, com 430 votos a 9,  o Projeto de Emenda Constitucional n. 37, conhecida como PEC 37.

O texto original da emenda visava acrescentar o § 10°, do art. 144, da Constituição Federal e trazia a seguinte proposta:

“A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1° e 4° deste artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente”.

Em suma, concedia às polícias civil e federal a exclusividade da investigação criminal, com isto, eliminando toda a atividade investigatória criminal suplementar, a qual é bastante vasta no ordenamento jurídico pátrio como bem podemos observar no escrito de 20/05 - http://goo.gl/alRiQ. Mesmo um texto aditivo apresentado ao original coibiria uma série de investigações.

Contudo, cabe o alerta que a PEC visava impedir, em especial, a investigação pelos representantes do Ministério Público, o que leva ao questionamento de hoje: pode o representante do Ministério Público investigar?

Há uma série de argumentos contrários, sendo o principal a falta de previsão expressa na Constituição Federal. Contudo, o artigo 129, I, da Carta Magna ordena ao Ministério Público a atribuição de promover a ação penal pública, para a qual faz-se necessária a colheita de provas, sendo ilógico o raciocínio de que o detentor da ação penal não possa proceder qualquer investigação para o exercício de seu mister. Também da Constituição o inciso IX, do mesmo artigo, que prevê o exercício de outras funções compatíveis com sua finalidade.

Em uma colheita de argumentos favoráveis à investigação pelo Ministério Público destacaríamos:

1) O MP como titular da ação pública não pode ser mero espectador da investigação.

2) O IP é dispensável, portanto não há que se falar em tripartição da persecução criminal (investigar, propor ação e julgar).

3) Segundo a CF cabe ao MP exercer outras funções compatíveis com a instituição.

4) A prática e a realidade atual (independência do MP em relação aos poderes estatais) permite uma interpretação evolutiva da norma constitucional.

5) A CF não dispôs que a investigação seja exclusiva atividade policial.

Levada à questão ao STF, este assim se pronunciou:

[...] No modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do que já enfatizado pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF: “situações de lesão ao patrimônio público, [...] excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações penal”. No caso concreto, constata-se situação, excepcionalíssima, que justifica a atuação do Ministério Público na coleta das provas que fundamentam a ação penal [...]HC 84965 - Relator(a):  Min. GILMAR MENDES - Julgamento:  13/12/2011  Órgão Julgador:  Segunda Turma


Habeas corpus. 2. Poder de investigação do Ministério Público. 3. Suposto crime de tortura praticado por policiais militares. 4. Atividade investigativa supletiva aceita pelo STF. 5. Ordem denegada. HC 93930 / RJ - RIO DE JANEIRO
Julgamento:  07/12/2010   Órgão Julgador:  Segunda Turma

Também há julgamento suspenso pelo Pleno do STF (HC 84548), no qual há oito votos proferidos, sendo sete favoráveis à investigação pelo Ministério Público.

Logo, com a rejeição da PEC 37, quanto à possibilidade de investigação pelo Ministério Público, entendo que é possível em hipóteses específicas e supletivas à atividade policial, conforme decisões do STF e sob os fundamentos acima expostos.

Abraço a todos,

terça-feira, 25 de junho de 2013

A representação como peça obrigatória ao inquérito policial

Apresentemos um fato hipotético:

a) Tício, no conforto de sua casa, dá início a um serviço de distribuição on line de filmes, disponibilizando vários títulos em site da Internet para locação e compra de seus associados. Tício chamou o site de roubaflix.  

b) Tício, um pouco por esquecimento, mas, sobretudo por má-fé, não possui autorização dos titulares dos direitos dos filmes por si disponibilizados.

c) Empresa concorrente após desconfiar do nome do site e dos preços que eram praticados (muito abaixo do valor de mercado) informou os fatos ao delegado de polícia que, mediante portaria, instaurou inquérito policial.

d) Tício, mediante advogado, ingressou com Habeas Corpus, perante o juiz de direito da respectiva comarca visando o trancamento do inquérito policial contra si instaurado.

Terá Tício sucesso?

A resposta é ...  positiva, o inquérito policial deverá ser trancado. Vejamos o porquê.

O inquérito policial será iniciado: a) de ofício (mediante portaria); b) mediante requisição (assuntos das postagens anteriores); c) mediante requerimento do ofendido (casos de crimes que se processam mediante ação privada); d) com o APF; e) mediante representação (casos de crimes que se processam mediante ação pública condicionada).

Quanto ao início do IP mediante representação, extrai-se do § 4°, do art. 5º, do CPP, que: O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá ser ela ser iniciado.

No caso em pauta, o delegado de polícia deu início ao inquérito policial de ofício, mediante portaria. Resta a pergunta, qual a modalidade criminosa praticada? E referido crime se processa mediante que espécie de ação penal? (Privada, Pública Incondicionada ou Pública Condicionada).

Quanto ao crime, encontramos a conduta de Tício descrita  no § 3°, do artigo 184, do CP:

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

§ 3o Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Por sua vez, tal delito se processa, segundo o disposto no art. 186, inciso IV, mediante ação pública condicionada à representação.

Logo, a autoridade policial somente está autorizada a instaurar o inquérito policial mediante representação da vítima ou de quem a represente. Salientando que, no caso, a vítima não é o estabelecimento comercial concorrente mas sim quem possua os direitos das obras comercializadas ilegalmente.

Fica para hoje a informação de que a representação  é obrigatória não apenas para início da ação penal nos casos de ação pública condicionada à representação, mas também para a instauração do inquérito policial.

Abraço a todos,

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Da requisição para abertura de inquérito policial - Parte final.

Encerramos a semana passada como seguinte caso:

a) Promotor de Justiça da Comarca “A”, tomou conhecimento, via jornal de circulação local, sobre um crime de incêndio ocorrido na referida Comarca.

b) Ato contínuo o Promotor expediu ofício ao Delegado de Polícia local requisitando a abertura do inquérito policial, no que não foi atendido. O não atendimento deu-se em face da inimizade entre o delegado e o dono do prédio incendiado.

Concluímos que a requisição proveniente do Poder Judiciário ou Ministério Público é de atendimento obrigatório e não poderá ser indeferida pela autoridade policial. Contudo, em alguns casos faz-se possível a negativa, desde que fundamentada.

Deixamos, contudo, a seguinte indagação: Em caso de acolhimento da requisição e consequente instauração do inquérito policial, quem será a autoridade coatora? Onde deverá ser impetrado o Habeas Corpus para trancamento de referido inquérito?

Conhecemos várias decisões de tribunais estaduais apontando o delegado de polícia como autoridade coatora sob o argumento de que este instaura e preside o Inquérito Policial. A acolher tal entendimento a autoridade competente para o conhecimento do Habeas Corpus seria o juiz de direito.

Contudo, tanto o STF como STJ firmaram entendimento de que a autoridade coatora é o juiz de direito, ou promotor de justiça, eis que a requisição tem natureza de ordem e não poderá ser recusada, pelo que o Habeas Corpus deverá ser instaurado perante o Tribunal de Justiça.

Senão vejamos:

RECURSO ESPECIAL - HABEAS CORPUS - INQUERITO ABERTO POR

DETERMINAÇÃO DO MINISTERIO PUBLICO ESTADUAL - ACORDÃO FUSTIGADO, QUE ENTENDE SER COMPETENTE O JUIZO DE PRIMEIRO GRAU, PARA PROCESSAR E JULGAR O WRIT, AINDA QUE O INVESTIGATORIO TENHA SIDO ABERTO POR REQUISIÇÃO DO PARQUET - ENTENDIMENTO QUE CONTRARIA REITERADA JURISPRUDENCIA DA SUPREMA CORTE.

1. TENDO O INQUERITO POLICIAL, DE ONDE EMANARIA A COAÇÃO, SIDO ABERTO POR REQUISIÇÃO DO MINISTERIO PUBLICO ESTADUAL, A  COMPETENCIA PARA PROCESSAR E JULGAR O WRIT, QUE VISA O TRANCAMENTO DO INVESTIGATORIO, E DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO. PRECEDENTES DO STF.

2. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (STJ - Resp 90175).

 
Desse modo, se o IPM foi instaurado por requisição de membro do Ministério Público Militar, este deve figurar como autoridade coatora (RHC 64.385/RS, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 07.11.1986), cabendo ao Tribunal Regional Federal o julgamento de eventual habeas corpus impetrado contra a instauração do inquérito. (STF – RMS 27872).

Para fins de concurso e mesmo para a prática diária, sugiro a seguinte conclusão: em caso de inquérito policial instaurado mediante requisição do juiz de direito ou membro do Ministério Público, a autoridade coatora será a autoridade requisitante e não o delegado e polícia que instaurou o inquérito policial.

Abraço a todos,

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Da requisição para abertura de inquérito policial - Parte II

Seguindo na matéria de Direito Processual Penal, mais especificamente quanto ao Inquérito Policial, ontem apresentamos os seguintes fatos:

a) Promotor de Justiça da Comarca “A”, tomou conhecimento, via jornal de circulação local, sobre um crime de incêndio ocorrido na referida Comarca.

b) Ato contínuo o Promotor expediu ofício ao Delegado de Polícia local requisitando a abertura do inquérito policial, no que não foi atendido. O não atendimento deu-se em face da inimizade entre o delegado e o dono do prédio incendiado.

Concluímos que a requisição (instrumento pelo qual o juiz e representante do Ministério Público ordenam* a instauração de inquérito policial) deve obrigatoriamente ser atendida pelo delegado de polícia, contudo, afirmamos que há exceções. Quais?

Embora a Lei não apresente, de forma direta, as possíveis exceções, podemos conjecturar sobre alguns fatos que afastariam a obrigatoriedade de instauração de inquérito policial mediante requisição. Por exemplo:

a) se o fato apresentado na requisição não constitui infração penal – ora, a finalidade da polícia judiciária, segundo o Art. 4°, do CPP (e da previsão constitucional) é a apuração das infração penais e sua autoria, sendo que o instrumento utilizado será o inquérito policial, logo, se o fato apresentado na requisição não constituí infração penal, não há que falar-se em obrigatoriedade de instauração do IP.

b) se já há apuração dos fatos em inquérito policial e andamento – não faz sentido a duplicidade de investigações sobre os mesmo fatos, sobretudo pela mesma autoridade policial.

c) falta de dados suficientes para o início das investigações – a falta de elementos mínimos impedem a instauração do inquérito policial.

d) falta de fundamentos jurídicos na requisição realizada por Promotor de Justiça  – segundo o inciso VIII, do art. 129, da Constituição Federal, o representante do Ministério Público deve fundamentar a requisição para fins de instauração do IP.

Na doutrina encontramos ensinamentos a respeito:

Segundo Nucci (in Manual de processo e Execução Penal, p. 131):

Requisições dirigidas à autoridade policial, exigindo a instauração de inquérito contra determinada pessoa, ainda que aponte o crime, em tese, necessitam conter dados suficientes que possibilitem ao delegado tomar providências e ter um rumo a seguir.

De Tourinho Filho (in Código de Processo Penal Comentado, 13ª ed. p. 66):

[...] tratando-se de bisonha e absurda requisição, sem um mínimo de informes que possibilitem ao menos um início de investigação, evidentemente não poderá a Autoridade Policial dar-lhe cumprimento.

Segundo Mougenot (in Código de Processo Penal Anotado, 4ª edição, p. 59):

Compreensão mais precisa implica identificar como fundamento da obrigatoriedade da requisição o dever funcional da autoridade policial de instaurar investigação tão logo tenha conhecimento de alguma prática potencialmente criminosa.

Também é conclusão doutrinária que caso ocorra quaisquer das situações que impeçam a instauração do Inquérito Policial, deverá o delegado de polícia comunicar à autoridade requisitante da não instauração e dos fundamentos para a negativa.

Ficamos então com a seguinte informação: o atendimento da requisição para instauração de inquérito policial proveniente de autoridade judiciária e membro do Ministério Público é, de regra, obrigatório, sendo que, em situações pontuais poderá ser recusada pela autoridade policial que deverá fundamentar a recusa, sob pena dos crimes de prevaricação ou desobediência, conforme o caso.

Ainda nos resta a indagação sobre quem seria a autoridade coatora nos casos de instauração de inquérito policial por requisição do juiz ou promotor, o que trataremos na semana vindoura.

Abraço a todos e bom fim de semana,


* Ordem pressupõe hierarquia, o que não ocorre entre juiz, promotor de justiça e delegado de polícia, portanto, embora a natureza seja de ordem, tecnicamente não é o termo adequado.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Da requisição para abertura de inquérito policial - Parte I

Eis os fatos:

a) Promotor de Justiça da Comarca “A”, tomou conhecimento, via jornal de circulação local, sobre um crime de incêndio ocorrido na referida Comarca.

b) Ato contínuo o Promotor expediu ofício ao Delegado de Polícia local requisitando a abertura do inquérito policial, no que não foi atendido. O não atendimento deu-se em face da inimizade entre o delegado e o dono do prédio incendiado.

Quanto ao aspecto jurídico nos centremos na obrigatoriedade da requisição do promotor de justiça, ou ainda, do juiz de direito. A questão é: o atendimento da requisição é obrigatório?

A princípio sim, a requisição é de atendimento obrigatório, o que se conclui de seu próprio nome “requisição”, ou seja, não é um requerimento, pedido ou solicitação. (Requisitar = exigir legalmente).

O CPP, em seu § 2°, do art. 5°, faz previsão de indeferimento tão somente para o requerimento de instauração do IP, ou seja, apenas para os casos de crimes que se processam mediante ação privada (o IP tem início, em casos de crime de ação privada, pelo requerimento). Por sua vez, o CPP silencia quanto à requisição, o que leva à conclusão de sua obrigatoriedade.

No caso posto, como o não atendimento deu-se por motivação particular, o delegado de polícia foi denunciado pelo crime de prevaricação, em casos em que não ocorra o interesse pessoal, creio que o crime de desobediência seria o mais adequado.

Em Recurso de HC interposto perante o STF, o caso teve a seguinte resposta:

“Crime de ação pública – Pedido de abertura de inquérito pelo Ministério Público desatendido pela autoridade policial – Denúncia do delegado como incurso nas penas do art. 319 do CP.” (RHC 59025 – de 30/06/1981).

Duas questões necessitam ainda ser postas quanto à requisição: a) há casos em que é possível o não atendimento à requisição para instauração do IP? b) em caso de abertura de IP mediante requisição do promotor de justiça, onde deverá ser interposto o Habeas Corpus?

Amanhã continuamos no assunto.

Abraço a todos,

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Mais uma característica do Inquérito Policial - sua dispensabilidade

Questões de concurso e a lida na prática forense penal, vez por outra, nos levam ao questionamento sobre a dispensabilidade ou indispensabilidade do inquérito policial. É possível que o representante do Ministério Público, ou mesmo o querelante, iniciem ação penal sem investigação policial prévia?

Acompanhe os seguintes fatos:

a) Na cidade do Rio de Janeiro, Mévio e Tício constituíram uma empresa da qual se utilizaram para a obtenção de lucro ilícito, mais especificamente, utilizavam-se da pessoa jurídica apenas como instrumento de engodo, ofereciam produtos que nunca existiram em troca do dinheiro das vítimas.

b) Os fatos foram apurados por órgãos de defesa do consumidor que, inclusive, tomou a termo o depoimento de algumas vítimas.

c) Os documentos foram enviados a promotor de justiça da área criminal que tinha em suas mãos todos os elementos necessários para a denúncia. Assim a ofereceu perante o juiz competente, dando início à ação penal contra Tício e Mévio.

d) Mévio e Tício entraram com HC visando o trancamento da ação penal, eis que não houve investigação dos fatos por inquérito policial.

Como o leitor pode ver a questão perpassa pela indagação inicialmente feita. O Inquérito Policial é obrigatório para o início da ação penal? É o IP condição de procedibilidade da ação penal?

A resposta é negativa, uma das características do Inquérito Policial é a dispensabilidade.

Podemos afirmar, assim como o leitor, quer nos concursos, quer na vida prática, que o inquérito policial é dispensável, desde que o autor da ação penal possua os elementos para o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime.

Do STF colhemos:

HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. ART. 171, CAPUT DO CÓDIGO PENAL. 1 - O inquérito policial não é procedimento indispensável à propositura da ação penal (RHC nº 58.743/ES, Min. Moreira Alves, DJ 08/05/1981 e RHC nº 62.300/RJ, Min. Aldir Passarinho).  [...] (HC 82246).

Logo, dentre as características do IP, quais sejam: oficialidade, oficiosidade, indisponibilidade, sigiloso, inquisitivo e escrito, acrescentamos a dispensabilidade.

A ação penal não foi trancada e Tício e Mévio responderam pelos estelionatos praticados.

Abraço a todos,

terça-feira, 18 de junho de 2013

O Inquérito Policial tem por característica o sigilo. Parte II.

Ontem verificamos os seguintes fatos:

a) Em Comarca do Estado do Rio Grande do Sul foi determinada judicialmente, a requerimento da autoridade policial, uma busca e apreensão na sede da empresa de Mévio e Tício.

b) Ao concluírem as diligências as autoridades presentes não apresentaram qualquer relação dos bens efetivamente apreendidos.

c) Mediante defensor, Mévio e Tício requereram acesso aos autos de investigação, o que lhes foi negado pelo Juízo de primeiro grau, ante o sigilo sob o qual corria o inquérito. De igual forma negaram o direito aos requerentes o TJRS e o STJ, este último por questão preliminar e prejudicial ao HC interposto (não examinou o mérito).

Ainda em escrito anterior, apresentamos as características do inquérito policial, dentre as quais ser este sigiloso (art. 20, do CPP). 

Ficou para hoje a descrição da exceção.

Tício e Mévio apresentaram HC perante o STF de onde então receberam a concessão da ordem para que tivessem acesso ao inquérito policial. E o sigilo?

Segundo o STF o sigilo do IP não poderá se sobrepor aos princípios do contraditório e da ampla defesa.  Ademais, a Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB), expressa no inciso XIV, do art. 7°, que dentre os direitos do advogado está o de exame de autos de inquérito policial.

Edita-se então a Súmula Vinculante n. 14: É DIREITO DO DEFENSOR, NO INTERESSE DO REPRESENTADO, TER ACESSO AMPLO AOS ELEMENTOS DE PROVA QUE, JÁ DOCUMENTADOS EM PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO REALIZADO POR ÓRGÃO COM COMPETÊNCIA DE POLÍCIA JUDICIÁRIA, DIGAM RESPEITO AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA.

Portanto, é característica do IP o sigilo, contudo, deve ser dado vista dos autos ao defensor quando por este requerido.

Posteriormente o STF limitou este direito de vista dos autos. Em decisões posteriores, garantiu Supremo Tribunal apenas o direito de acesso às diligências já concluídas e não acesso às diligências em andamento. Senão vejamos:

Rcl 10110 / SC - SANTA CATARINA - Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI
Julgamento:  20/10/2011           Órgão Julgador:  Tribunal Pleno


Ementa: RECLAMAÇÃO. CONSTITUCIONAL. HIPÓTESES DE CABIMENTO. ARTS. 102, I, L, E 103-A, § 3º, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DESCUMPRIMENTO DA SÚMULA VINCULANTE 14 NÃO VERIFICADO. ACESSO DOS ADVOGADOS AOS AUTOS DO INQUÉRITO, RESSALVADAS AS DILIGÊNCIAS EM ANDAMENTO. [...] Os advogados poderão, no decorrer da instrução criminal, acessar todo o acervo probatório, na medida em que as diligências forem concluídas. [...].

 Ficamos então assim:

1) O Inquérito Policial tem por característica ser sigiloso (Art. 20, do CPP);

2) Ao defensor dar-se-á vista dos autos de investigação quando assim requerido (Sumula  Vinculante 14);

3) O defensor terá acesso apenas às diligências já concluídas (STF). 

 
Abraço a todos,

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O Inquérito Policial tem por uma de suas características o sigilo

a) Em Comarca do Estado do Rio Grande do Sul foi determinada judicialmente, a requerimento da autoridade policial, uma busca e apreensão na sede da empresa de Mévio e Tício.

b) Ao concluírem as diligências as autoridades presentes não apresentaram qualquer relação dos bens efetivamente apreendidos.

c) Mediante defensor, Mévio e Tício requereram vista dos autos de investigação, o que lhes foi negado pelo Juízo de primeiro grau, ante o sigilo sob o qual corria o inquérito. De igual forma o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o STJ negaram o direito de vista aos requerentes, este último por questão preliminar e prejudicial ao HC interposto (não examinou o mérito).

Juridicamente o que temos:

Uma investigação policial, a qual, por sua vez, possui as seguintes características: a) Oficialidade; b) Oficiosidade; c) Indisponibilidade; d) Inquisitivo; e) Dispensabilidade; f) Escrito e g) Sigiloso.

A característica “sigiloso”, destacada na decisão judicial de nosso caso prático,  está prevista no art. 20, do CPP: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.

Logo, sob o ponto de vista das características do inquérito policial e do CPP, adequada a decisão do Juiz e Tribunal gaúchos.

Pode então o leitor guardar a informação de que uma das características do inquérito policial é o sigilo.

Há exceção? Como quase tudo no Direito, sim, há exceção ao sigilo do inquérito policial.

Amanhã trataremos de como o STF tratou a matéria, editando, inclusive, súmula vinculante.

Abraços,

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Furto ou estelionato - fato inusitado.

Em certo tempo da carreira de promotor de justiça, adentrou no gabinete um morador do interior de uma pequena cidade do interior do estado, portanto, pessoa bastante simples e, no caso, desprovido das malícias da cidade grande. Apresentou-me uma narrativa na qual se dizia vítima de furto. Siga a narrativa dos fatos:

1) - O vidente russo veio até a minha propriedade com um aparelho de descobrir ouro, parecia uma enxada (aos nobres acadêmicos da cidade sugiro uma pesquisa no google imagens para verificar o que seja uma enxada), mas com uns ponteiros e um negócio que apitava de vez em quando.

2) - Após procurar no meu terreno por uns 15 minutos o aparelho começou a apitar mais forte. O vidente russo falou então ter achado o ouro e me mostrou uma pedra na qual havia cerca de 1 Kg (um quilo) de ouro.

3) - Fui na cidade com a pedra e levei no seu fulano, que trabalha com ouro, mas ele me disse que não havia ouro na pedra.

E, ainda de um inexperiente promotor pasmado, a vítima continuou: - Doutor, o vidente russo me roubou o ouro que tava dentro da pedra!

Tomei a termo o depoimento e a única pergunta acrescida para a futura requisição de instauração de inquérito policial foi: Quanto o vidente russo cobrou pelo serviço? E a resposta foi R$ 10,00 (dez reais).

A requisição, por óbvio, foi pelo crime de estelionato e não furto, eis que não houve a subtração de qualquer ouro, mas sim, a obtenção de vantagem ilícita mediante prejuízo alheio através de engodo.

A vítima saiu do gabinete discordando da classificação jurídica que dei aos fatos, entendendo que sofreu a subtração de seu precioso ouro e um tanto quanto desapontado com a justiça.

Abraço a todos e bom final de semana.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Aborto necessário e o princípio da indeclinabilidade da prestação de jurisdição

Interessante caso apresentou-se no Poder Judiciário do Paraná:

1) “A” estava grávida, mas apresentava quadro de doença cardíaca grave, sendo que a continuidade da gestação levaria à morte a mãe e feto.

2) Os médicos recusaram-se à realização do aborto sem uma autorização judicial.

3) “A” solicitou ao Juiz de Direito da Comarca que concedesse alvará judicial autorizando o procedimento de aborto.

4) O Juiz de Direito negou o pedido sob o argumento da ausência de interesse de agir.

5) O Ministério Público apelou ao TJPR que entendeu adequada, em parte, a sentença, contudo, concedeu o alvará requerido.

Juridicamente:

No caso, o aborto é possível ante a previsão do artigo 128, § 1º, do CP (aborto necessário ou terapêutico):

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: 

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

A lei penal apresenta uma excludente de ilicitude, sendo que o médico (e apenas médico)  que interromper gravidez mediante aborto em função do risco de vida da mãe, não estará praticando qualquer delito.

E a conclusão lógica é que se faz desnecessário qualquer alvará judicial ou decisão do Poder Judiciário para autorizar a prática já permitida legalmente e que não se constitui crime e, neste ponto, adequada a decisão de primeiro grau. Lembremos que como fundamento a decisão utilizou-se de uma das condições da ação, no caso, o interesse de agir (as outras duas seriam a legitimidade da parte e a possibilidade jurídica do pedido).

Contudo, entendemos melhor o recurso do MP e a decisão do TJPR, eis que, o magistrado recorrido passou ao largo de um dos princípios da jurisdição, qual seja o da indeclinabilidade da prestação jurisdicional que está positivado no inciso XXXV, do art. 5º, da CF, senão vejamos:

“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional informa que não é dado ao órgão do Poder Judiciário, abster-se da decisão a si posta.

No caso posto ao início do nosso escrito, o interesse de agir decorria do fato de que os profissionais negavam-se ao procedimento, embora a lei os autorizasse, logo, muito embora a decisão de 1º grau fosse adequada quanto à desnecessidade de alvará, não atentou ao princípio de que, ante a negativa do corpo médico, não poderia o Judiciário abster-se de apresentar solução positiva ou negativa.

O TJPR reformou a decisão de primeiro grau concedendo a autorização do aborto exatamente sob o argumento do princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional.

Até a próxima publicação,

 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Financiamento mediante fraude. Quem julga? Parte II.

Ontem relatei que em caso obtenção de financiamento mediante fraude contra instituição financeira o processo deverá seguir na Justiça Federal.

O leitor deve atentar-se, contudo, para o fato de que a competência da Justiça Federal dar-se-á tão somente em caso de financiamento e leasing (que nada mais é que espécie de financiamento) e não no caso de empréstimos bancários, onde não há vínculo entre a concessão do dinheiro pelo banco e os bens adquiridos com estes recursos financeiros.

Neste sentido, inclusive, decisões do STJ:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. OBTENÇÃO DE FINANCIAMENTO JUNTO A INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS MEDIANTE FRAUDE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Na esteira de julgados da Terceira Seção desta Corte, o tipo penal do art. 19 da Lei 7.492/86 exige para o financiamento vinculação certa, distinguindo-se do empréstimo que possui destinação livre. 2. No caso, conforme apurado, os contratos celebrados mediante fraude envolviam valores com finalidade certa, qual seja a aquisição de veículos automotores. A conduta em apreço, ao menos em tese, se subsume ao tipo previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/86, que, a teor do art. 26 do mencionado diploma, deverá ser processado perante a Justiça Federal.(Conflito de Competência 112244).

PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. OBTENÇÃO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL, NA MODALIDADE DE LEASING FINANCEIRO, JUNTO A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, MEDIANTE FRAUDE, PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO ESPECÍFICO. ADEQUAÇÃO TÍPICA. ART. 19 DA LEI 7.492/86. PRECEDENTES DA 3ª SEÇÃO DO STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 109, VI, DA CF/88 E ART. 26 DA LEI 7.492/86. I. De acordo com a jurisprudência da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, não obstante o contrato de leasing financeiro tenha suas peculiaridades, não há como negar que essa modalidade de arrendamento mercantil envolve financiamento, para aquisição de bem específico, e instituição financeira, consoante definição do art. 1º da Lei 7.492/86, o que atrai o tipo penal previsto no art. 19 da Lei 7.492/86, quando obtido mediante fraude. II. Com efeito, "na esteira de julgados da Terceira Seção desta Corte, o tipo penal do art. 19 da Lei 7.492/86 exige para o financiamento vinculação certa, distinguindo-se do empréstimo que possui destinação livre. No caso, conforme apurado, os contratos celebrados mediante fraude envolviam valores com finalidade certa, qual seja a aquisição de veículos automotores. A conduta em apreço, ao menos em tese, se subsume ao tipo previsto no art. 19 da Lei n° 7.492/86, que, a teor do art. 26 do mencionado diploma, deverá ser processado perante a Justiça Federal" (STJ, CC 112.244/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, DJe de 16/09/2010). III. No caso concreto, competente é a Justiça Federal, em face da adequação típica ao art. 19 da Lei 7.492/86, eis que a conduta em apuração, no Inquérito Policial, refere-se a contrato de arrendamento mercantil, na modalidade de leasing financeiro, (e não de empréstimo pessoal, em que não há vinculação quanto ao objeto), com a BV Financeira (instituição financeira, nos termos do art. 1º da Lei 7.492/86), para a aquisição do veículo específico, mediante a apresentação de documentos pessoais falsos, com domicílio e condição profissional do contratante igualmente falsos. Precedentes da Terceira Seção (STJ, CC 113.434/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe de 16/06/2011; CC 112.244/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, DJe de 16/09/2010; CC 111.477/SP, Rel. p/ acórdão Ministro CELSO LIMONGI (Desembargador Convocado do TJ/SP), DJe de 11/04/2011; CC 114.322/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe de 01/08/2011).  

Logo:

a) casos de financiamento ou leasing mediante fraude – Justiça Federal;

b) casos de empréstimo pessoal – dependerá da qualidade da vítima:

b1) Se a vítima for autarquia ou empresa pública federal (Caixa Econômica por exemplo) – Justiça Federal (Crime - Art. 19, da Lei 7492);

b2) Caso a vítima não seja autarquia ou empresa pública federal (exemplo das sociedades de economia mista) – Justiça Estadual (Crime - Art. 171, do CP).

Abraços,

terça-feira, 11 de junho de 2013

Financiamento mediante fraude. Quem julga?

Semana passada recebi inquérito policial onde foram apurados os seguintes fatos:

1) Mévio dirigiu-se a uma revendedora de automóveis onde adquiriu, mediante financiamento concedido por departamento de financiamentos de banco privado,  um veículo VW Fox 1.0 MI T Flex.

2) Contudo, Mévio apresentou-se como sendo  Tício, bem como apresentou documentação que trazia a qualificação de Tício mas com a fotografia de si próprio (Mévio), em suma, documentação falsa e engodo.

3) Por óbvio, Mévio não pagou qualquer prestação do financiamento obtido e, ao final, sumiu do mapa juntamente com o veículo.

Denúncia, arquivamento ou pedido de diligências?

No caso, nenhum dos três caminhos freqüentemente adotados. Solicitamos a remessa ao Juiz Federal, que é o juiz natural para o processamento e julgamento do caso, mesmo com prejuízo de banco privado.  A razão?

Primeiro – o crime fim não foi estelionato, ao menos não como previsto no Código Penal em seu artigo 171, mas sim de estelionato específico, com previsão no artigo 19, da Lei 7.492/86, que assim dispõe: Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Segundo – A mesma lei, em seu artigo 26, assim dispõe: A ação penal, nos crimes previstos nesta Lei, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante a Justiça Federal.

Eis as razões pelas quais solicitei a remessa ao Juízo Federal, eis que ante a especialidade do crime praticado, o julgamento deverá ser realizado naquele órgão do Poder Judiciário, sob pena de ofensa ao Princípio do Juiz Natural.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Pirataria e condição de procedibilidade

Semana passada recebi inquérito policial dando conta dos seguintes fatos:

1) Mévio mantinha comércio no camelódromo da cidade, onde expunha à venda vários DVDs piratas ou não originais ou em desrespeito ao direito de autor, como queira (tipo Roke 1, 2 e 3 ou O Sexto Sem Tido).

2) Em ação da Polícia Civil foram apreendidos 1000 (mil) DVDs da espécie no comércio de Mévio.

3) No inquérito policial encontramos: a) Portaria; b) Boletim de Ocorrência; c) Auto de Exibição e Apreensão; d) Termos de Oitiva dos policiais que efetuaram a apreensão; e) Termo de interrogatório de Mévio.

O crime praticado encontra previsão no art. 184, § 2°, do CP, a ser promovido mediante ação pública incondicionada, segundo o disposto no art. 186, inciso II, do CP.

Contudo, com vista do inquérito policial não foi possível oferecer a denúncia. Porque?

Por força do artigo 525, do CPP. Segundo tal dispositivo a denúncia, ou queixa, nos casos de crime contra a propriedade imaterial, só será recebida se acompanhada do exame pericial dos objetos que constituam o corpo de delito.

Como ainda não realizado o exame pericial necessário, incabível o oferecimento da denúncia. Portanto, podemos afirmar que o exame pericial dos objetos apreendidos no que concerne aos crimes contra a propriedade imaterial é condição de procedibilidade ou requisito de procedibilidade da ação penal. 

Para ilustrar, segue parte de ementa em decisão proferida no STJ:

[...] O Código de Processo Penal, em seus artigos 524 a 530, regula o processamento e o julgamento dos crimes contra a propriedade imaterial, caso dos autos. O art. 525, especificamente, estabelece que, nos crimes em que sejam deixados vestígios, a petição de queixa ou denúncia não será recebida se não for instruída com o exame pericial dos objetos que constituam o corpo do delito. - Observa-se que a perícia, nestes casos, é indispensável para a propositura da ação penal. Logo, o juízo não poderia ter recebido queixa sem a juntada do laudo pericial. Nesse particular, portanto, assiste razão ao recorrente. - Recurso provido apenas para determinar a revogação da decisão que recebeu a queixa-crime, até a juntada aos autos, do laudo pericial. (RHC 9854 de 18/12/2000).

Abraços e os desejos de uma boa semana a todos,

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Modificação de competência no meio do jogo, onde vai parar o processo?

Ontem verificamos competência quanto ao crime de homicídio praticado por militar, no exercício da função, contra civil, verificando que, no caso Carandiru, os policiais militares foram julgados pelo tribunal do júri da Comarca de São Paulo e não na Justiça Militar, em face da modificação legal trazida pela Lei 9299/96 e pelo entendimento de que a modificação de competência é norma processual e, portanto, aplica-se de imediato.

Alertamos, contudo quanto a uma possível ressalva (não é raro a ocorrência de exceções em se tratando de Direito e o leitor já deve saber disto). 

A ressalva diz respeito à afirmação que “a norma de modificação de competência tem aplicação imediata eis que norma processual”.  Pois bem, quanto ao primeiro grau de jurisdição isto é verdadeiro, segundo o entendimento do STF que ontem (06/06/13) vimos, contudo, o entendimento diverge quanto a processos que já estariam tramitando em segundo grau de jurisdição.

No caso da Justiça Militar, equivale dizer que, caso o processo penal esteja em trâmite na 1ª Instância, imediatamente será remetido ao Juízo Comum em caso de mudança de competência, aproveitando-se os atos já praticados, eis que, até então, a Justiça Militar detinha a competência legal. Mas caso o processo esteja tramitando no segundo grau da Justiça Militar, este ali permanecerá para julgamento, sob o argumento de que não cabe ao segundo grau da Justiça Comum reformar ou manter sentença proferida em órgão sentenciante de jurisdição especial.  

Neste sentido: DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL MILITAR. JURISDIÇÃO. COMPETÊNCIA. CRIME MILITAR: HOMICÍDIO DOLOSO CONTRA A VIDA DE CIVIL, IMPUTADO A POLICIAIS MILITARES. RÉUS JULGADOS EM 1ª INSTÂNCIA NA JUSTIÇA MILITAR (ART. 441 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR) E, EM SEGUNDO GRAU, NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E NÃO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR. INVALIDADE DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO. COMPETÊNCIA: ARTS. 1º E 2º DA LEI Nº 9.299, DE 07.08.1996. "HABEAS CORPUS".  "Habeas Corpus" deferido, para anulação do acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a fim de que o julgamento da Apelação seja feito pelo Tribunal de Justiça Militar do mesmo Estado. HC 78320.

Também do STF - "As disposições concernentes à jurisdição e competência se aplicam de imediato, mas, se já houver sentença relativa ao mérito, a causa prossegue na jurisdição em que ela foi prolatada, salvo se suprimido o Tribunal que deverá julgar o recurso." (HC 76380).

Logo, caso o processo esteja em tramitação no segundo grau de justiça sobre a qual se alterou a competência, nesta será mantido para julgamento.

Abraço a todos e desejos de um bom final de semana,

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Porque policiais militares, por homicídio ocorrido em 1992, estão sendo julgados na Justiça Comum?

Em Tribunal do Júri realizado no mês de abril passado na Comarca de São Paulo, foram condenados 23 policiais militares por crimes de homicídio ocorridos na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru).

O crime foi praticado em 02 de outubro de 1992 durante operação da polícia militar na casa de detenção.

O alerta jurídico de hoje diz questão à competência para o julgamento, eis que os delitos foram praticados por policiais militares quando em serviço.

De regra, os crimes praticados por militares em exercício da função, serão julgados pela Justiça Militar, e assim o era quanto ao crime de homicídio praticado por militar contra civil. Contudo, em face de rumorosos casos de mortes de civis e insatisfação com a resposta da Justiça Militar, em 1996 foi editada a Lei 9299/96, acrescentando o parágrafo único ao artigo 9º, do Código Penal Militar, que assim expressa: Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.

Como os homicídios ocorridos no Carandiru foram praticados em tempo anterior à mudança da lei, nova dúvida surgiu. A modificação trazida pela Lei 9299/96 é de aplicação imediata?  Na matéria, o STJ apresentou a seguinte resposta:

PENAL. COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO COMETIDO POR MILITAR CONTRA CIVIL.

LEI 9.299/96. APLICABILIDADE IMEDIATA.

- É competente  para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, cometidos por militar contra civil, a Justiça Comum Estadual, nos termos da  Lei 9.299/96, mesmo que ocorridos antes de sua vigência, por força do princípio da aplicação imediata da lei

processual (art. 2º, do CPP). CC 19862 / SP

Informe-se ainda que a Emenda Constitucional n. 45/04 adicionou à Constituição Federal a competência da justiça militar para os crimes militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil. (Art. 125, § 4°), o que trouxe fim aos debates sobre a constitucionalidade da Lei 9299/96.

Em suma, os policiais militares foram julgados pelo tribunal do júri da Comarca de São Paulo e não na Justiça Militar, em face da modificação legal trazida pela Lei 9299/96 e pelo entendimento de que a modificação de competência é norma processual e, portanto, aplica-se de imediato.

Um cuidado é necessário no trato da referia matéria, mas isto é assunto para a postagem de amanhã.

Abraços,

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Crimes diversos conexos, comarcas distintas - onde será o processo?


Ontem apresentamos o seguinte caso:

1) Tiburcio praticou roubo, com a causa de aumento do uso de arma de fogo, na Comarca “X”, sendo que, uma semana após, Mévio adquiriu referido veículo, na Comarca “Y”, mesmo sabedor que se tratava de fruto de crime anterior.

2) Com o veículo em mãos, Mévio dirigiu-se à Comarca “Z”, onde possuía residência, onde trocou as placas verdadeiras por falsas e adulterou a numeração do chassi.

Concluímos que o caso apresentava conexão entre os crimes de receptação e adulteração de chassi, mas não entre estes e o roubo anteriormente praticado, pelo que, com relação ao roubo, e tão somente quanto a este, o processo tramitaria na Comarca “X”.

NA CONTRA MÃO - Contudo, vale o alerta de que o entendimento não é pacífico no que toca à existência ou inexistência da conexão probatória (ver postagem de ontem - 04/06/2013) entre a receptação e o crime anterior, sendo que há decisões no sentido de que não haverá crime de receptação sem a prova da infração penal anteriormente praticada, como bem podemos observar na seguinte decisão do Tribunal Gaúcho:

[...] Conquanto inegável a existência de conexão probatória ou instrumental entre os crimes de furto simples e receptação, nos termos do art. 76, III do CPP, na medida em que, para a configuração do delito de receptação, essencial a comprovação da origem ilícita da res, o que, em princípio, considerando o concurso de jurisdições de mesma categoria e a identidade das penas abstratamente cominadas aos delitos, determinaria a competência pela prevenção, a teor do art. 78, II, do CPP, na hipótese concreta, inexistindo elementos suficientes para a propositura de ação penal em relação ao delito de furto, ocorrido na Cidade de Alecrim, pois desconhecida sua autoria, fato que, inclusive, ensejou o arquivamento do inquérito policial relativo a esse delito, deve incidir a regra geral do art. 70 do CPP, prevalecendo a competência do lugar em que se consumou o crime de receptação, ou seja, da Comarca de Santa Rosa/RS. Precedentes do STJ. Competência do juízo suscitado afirmada. CONFLITO DE COMPETÊNCIA JULGADO PROCEDENTE. (Conflito de Competência Nº 70013567011, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Fabianne Breton Baisch, Julgado em 29/03/2006).

Discordamos do referido entendimento, eis que os crimes são autônomos e a prova da origem ilícita do bem não necessariamente deve dar-se com uma sentença penal que assim determine, sob pena de acolhermos não um caso de conexão, mas sim de condição de procedibilidade.

Sobre o tema, no relatório do Conflito de Competência 99494, do STJ, a relatora Maria Thereza de Assis Moura assim se manifestou: “Apenas se sabe que os bens apreendidos seriam produto de furto, mas não há menção a anterior procedimento criminal, nem existe notícia sobre elucidação de autoria. Todavia, dúvida não há sobre a consumação da receptação qualificada, que teve sítio na Comarca de Timon/MA. Por outro lado, a conexão apontada pelo suscitante não se mostra devidamente delineada. Ou seja, não se demonstrou a vis atrativa de suposto procedimento instaurado na Comarca de Teresina/PI em relação ao procedimento investigatório em testilha."

Em suma, nem sempre haverá conexão probatória entre o furto e a receptação.

Seguimos então quanto ao juízo competente para o processo e julgamento da receptação e adulteração de chassi. Seria o da comarca “Y” ou o da comarca “Z”?

O problema é de fácil solução, bastando a regra do artigo 78, inciso II, “a”, do CPP, ou seja, a competência será determinada pelo local da infração penal mais grave, no caso, o crime do artigo 311, do CP (adulteração de chassi).

Portanto será o Juiz da Comarca “Z” competente para apreciação dos crimes de receptação e adulteração de chassi praticados por Mévio. 

Abraço a todos,

 

terça-feira, 4 de junho de 2013

Crime anterior e receptação - há conexão?

Ontem falamos sobre a possibilidade do Tribunal do Júri julgar crimes que não necessariamente os dolosos contra a vida, inclusive, no caso concreto apresentado, os senhores jurados responderam sobre um crime de receptação. Vimos que, no caso, havia conexão entre o crime doloso contra a vida e os demais crimes, dentre estes a receptação, o que deu causa à união dos processos e atraiu a competência para o Tribunal do Júri.

Hoje trataremos da questão específica do crime de receptação e sua necessária, ou não, conexão com o crime anterior e posterior.

Tomemos como ponto de partida o seguinte caso:

1) Tiburcio praticou roubo, com a causa de aumento do uso de arma de fogo, na Comarca “X”, sendo que, uma semana após, Mévio adquiriu referido veículo, na Comarca “Y”, mesmo sabedor que se tratava de fruto de crime anterior.

2) Com o veículo em mãos, Mévio dirigiu-se à Comarca “Z”, onde possuía residência, onde trocou as placas verdadeiras por falsas e adulterou a numeração do chassi.

Os crimes estão previstos nos artigos 157, § 2°, I, 180 e 311, todos do CP.

Pergunta-se: O Juiz de qual Comarca será competente para o julgamento de Tiburcio e de Mévio? “X”, “Y” ou “Z”?

A resposta depende da solução de outra questão: Há conexão entre os fatos?

Segundo o CPP haverá conexão nos seguintes casos:

Art. 76. A competência será determinada pela conexão:

I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II – se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III – quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Descartamos, de plano, o inciso I (Conexão Intersubjetiva por simultaneidade, por concurso e por reciprocidade).

Sob o texto do inciso II, nos parece que não conseguimos enquadrar o roubo e a receptação, eis que a última não se deu para facilitar ou ocultar o primeiro, tampouco para obtenção de vantagem ou impunidade. Contudo, este é o caso da adulteração chassi (Art. 311, do CP), eis que esta se dá justamente para a obtenção de vantagem e ocultação sobre a receptação anteriormente realizada. Ou seja, podemos dizer que entre a receptação e a adulteração de chassi há Conexão Objetiva Consequencial (quando uma infração serve para ocultar a outra).  

Resta por fim a análise quanto ao inciso III, sendo que, no caso concreto apresentado não há descrição de que a prova quanto ao crime de receptação influencie na prova do roubo, ou vice-versa, pelo que não há elementos que permitam a conclusão pela Conexão Instrumental ou Probatória.  

Em suma, ante o quadro apresentado, haverá conexão, e conseqüente união de processos  entre os crimes de receptação e adulteração de chassi, mas não haverá união de processos quanto a estes delitos e o roubo praticado.

Como resposta à indagação inicial podemos então afirmar que Tibúrcio responderá a ação penal, pelo roubo praticado, na Comarca “X”.  Enquanto, os fatos praticados por Mévio, embora cometidos em comarcas diversas, será apurado em um único processo.

Amanhã seguimos quanto à Comarca juridicamente adequada ao julgametno de Mévio.

Abraço a todos,  

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Latrocínio no Tribunal do Júri


Em processo de júri do Estado de Santa Catarina, creio que o mais trabalhoso com o qual me deparei dado à complexidade e volume de páginas (mais que seis mil), os senhores jurados responderam quesitos sobre homicídio, ocultação de cadáver, latrocínio e receptação.

Como isto? Vamos, resumidamente, aos fatos:

a) Tício e Caio (sim os nomes são fictícios) contrataram Mévio, pelo valor de R$ 5000,00 (cinco mil reais) para que este matasse Tibúrcio. O objetivo de Tício e Caio não era a morte em si, mas sim a subtração de valores que Tibúrcio possuía em um cofre guardado no estabelecimento comercial que servia à compra e venda de veículos.

b) Mévio cumpriu com o acordo, ato contínuo Tício e Caio subtraíram os valores, bem como alguns veículos, os quais foram vendidos para terceiros, dentre estes Abrenúncio, que saberia da origem ilícita do bem (foi posteriormente absolvido).
 
c) Um ano após, Mévio entrou em contato com Tício, pedindo-lhe mais dinheiro, sob pena de entregar-lhe à polícia. Tício e Caio contrataram então Adonias para que matasse Mévio, o que de fato foi feito, inclusive com ocultação do cadáver, encontrado um mês após o crime.  

Juridicamente:

Latrocínio, receptação e ocultação de cadáver não são matérias para o Tribunal do Júri, eis que não são crimes dolosos contra a vida, estes sim de competência do colegiado leigo, segundo se extrai do art. 5°, inciso XXXVIII, da CF. Portanto, segundo a regra constitucional, apenas o homicídio deveria ser posto a julgamento perante os jurados.

Contudo, o artigo 76, II, do CPP, informa que:

Art. 76. A competência será determinada pela conexão:

I – se, ocorrendo duas ou mais infrações [...];

II – se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;

III – quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

No caso concreto apresentado o homicídio (segunda morte) foi cometido para ocultar o latrocínio anteriormente praticado, bem como para conseguir a impunidade com relação a este. Da mesma forma, a ocultação de cadáver deu-se para ocultar e garantir a impunidade em relação ao homicídio praticado. A doutrina classifica tal conexão como sendo: OBJETIVA, LÓGICA ou MATERIAL.

Por sua vez, a prova do latrocínio apresentava estreito vínculo com a prova da receptação praticada (nem sempre a receptação é conexa com o crime anterior). A doutrina classifica tal conexão como sendo: INSTRUMENTAL ou PROBATÓRIA.

Logo, houve um link entre os fatos apto ao reconhecimento da conexão, ou seja, união da apuração dos fatos em um único processo. A partir disto, deverá ser determinada a competência. Deverá o Magistrado singular julgar o feito? Ante a presença de três delitos de sua competência, incluindo dentre estes o crime mais grave? Ou do Tribunal do Júri, ante o crime doloso contra a vida?  

O artigo 78, I, do CPP expressa que a competência será do Tribunal do Júri, e mesmo que não o fizesse assim o seria, em face da especialidade e previsão constitucional de sua competência.

Por isto, o Tribunal do Júri decidiu sobre receptação, latrocínio e ocultação de cadáver, mesmo que estes não sejam crimes dolosos contra a vida.

Abraço a todos,